Neste domingo (06/10) o jornal Zero Hora publicou em seu caderno Donna uma coluna de Fabrício
Carpinejar
"Todo filho é pai da morte de seu
pai". Um assunto difícil mas
que foi tratado de modo sensível e afetuoso.
Como o blog é de viagem, e esta é uma viagem que todos vamos ter que
fazer acredito que o assunto é pertinaz. Boa Leitura!
Coluna 06/10/2013
| 12h01
Fabrício Carpinejar: "Todo filho é pai da morte de seu pai"
"Feliz do filho que é pai de seu pai antes da morte, e triste do
filho que aparece somente no enterro e não se despede um pouco por dia."
Fabrício Carpinejar
Há uma quebra na história familiar onde as idades
se acumulam e se sobrepõem e a ordem natural não tem sentido: é quando o filho
se torna pai de seu pai.
É quando o pai envelhece e começa a trotear como se
estivesse dentro de uma névoa. Lento, devagar, impreciso.
É quando aquele pai que segurava com força nossa
mão já não tem como se levantar sozinho. É quando aquele pai, outrora firme e instransponível,
enfraquece de vez e demora o dobro da respiração para sair de seu lugar.
É quando aquele pai, que antigamente mandava e
ordenava, hoje só suspira, só geme, só procura onde é a porta e onde é a janela
- tudo é corredor, tudo é longe.
É quando aquele pai, antes disposto e trabalhador,
fracassa ao tirar sua própria roupa e não lembrará de seus remédios.
E nós, como filhos, não faremos outra coisa senão
trocar de papel e aceitar que somos responsáveis por aquela vida. Aquela vida
que nos gerou depende de nossa vida para morrer em paz.
Todo filho é pai da morte de seu pai.
Ou, quem sabe, a velhice do pai e da mãe seja
curiosamente nossa última gravidez. Nosso último ensinamento. Fase para
devolver os cuidados que nos foram confiados ao longo de décadas, de retribuir
o amor com a amizade da escolta.
E assim como mudamos a casa para atender nossos
bebês, tapando tomadas e colocando cercadinhos, vamos alterar a rotina dos
móveis para criar os nossos pais.
Uma das primeiras transformações acontece no banheiro.
Seremos pais de nossos pais na hora de pôr uma
barra no box do chuveiro.
A barra é emblemática. A barra é simbólica. A barra
é inaugurar um cotovelo das águas.
Porque o chuveiro, simples e refrescante, agora é
um temporal para os pés idosos de nossos protetores. Não podemos abandoná-los
em nenhum momento, inventaremos nossos braços nas paredes.
A casa de quem cuida dos pais tem braços dos filhos
pelas paredes. Nossos braços estarão espalhados, sob a forma de corrimões.
Pois envelhecer é andar de mãos dadas com os
objetos, envelhecer é subir escada mesmo sem degraus.
Seremos estranhos em nossa residência. Observaremos
cada detalhe com pavor e desconhecimento, com dúvida e preocupação. Seremos
arquitetos, decoradores, engenheiros frustrados. Como não previmos que os pais
adoecem e precisariam da gente?
Nos arrependeremos dos sofás, das estátuas e do
acesso caracol, nos arrependeremos de cada obstáculo e tapete.
E feliz do filho que é pai de seu pai antes da
morte, e triste do filho que aparece somente no enterro e não se despede um
pouco por dia.
Meu amigo José Klein acompanhou o pai até seus
derradeiros minutos.
No hospital, a enfermeira fazia a manobra da cama
para a maca, buscando repor os lençóis, quando Zé gritou de sua cadeira:
— Deixa que eu ajudo.
Reuniu suas forças e pegou pela primeira vez seu
pai no colo.
Colocou o rosto de seu pai contra seu peito.
Ajeitou em seus ombros o pai consumido pelo câncer:
pequeno, enrugado, frágil, tremendo.
Ficou segurando um bom tempo, um tempo equivalente
à sua infância, um tempo equivalente à sua adolescência, um bom tempo, um tempo
interminável.
Embalou o pai de um lado para o outro.
Aninhou o pai.
Acalmou o pai.
E apenas dizia, sussurrado:
— Estou aqui, estou aqui, pai!
O que um pai quer apenas ouvir no fim de sua vida é
que seu filho está ali.
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